Os sem-religião somos 8% da população brasileira. Destes, menos ainda são céticos, uma vez que entre os não-religiosos estão os que não negam tudo. Mesmo ateus são apenas uma pequena parcela dos que afirmam não ter nenhuma religião – e o entendimento destes varia consideravelmente entre aspectos diversos da cultura mítica ou sobrenatural do nosso mundo. É um mundo solitário para os que entendemos que “não há, entre o céu e a terra, mais mistérios do que julga nossa vã filosofia”, pelo menos, em termos não-científicos ou não-astronômicos.
Há um ditado (chinês, acredito) que reza que, “com o dedo apontado para o céu, o tolo vê o dedo, enquanto o sábio olha pra lua”. Difícil saber quem é quem, já que tudo está no olhar. É possível ver no dedo a beleza de anos de evolução, o funcionamento bonito do sangue a correr, carregado de oxigênio a alimentar células, o crescimento das unhas, a delicadeza dos ossos. Quem olha a lua pode estar a contemplar um astro feito de queijo na abóboda celestial, ignorando, por exemplo, a beleza de sua formação, seu significado para o desenvolvimento da tecnologia que hoje usamos.
Mais difícil é conciliar olhares, encaixar-se na perspectiva alheia, sem feri-la e sem ferir a si mesmo. Entendo que não escolhi ser ateu; aconteceu-me. Mesmo quando tentei ser menino de igreja – e fui por algum tempo – eu vivia entre querer acreditar e fazer parte daquele grupo e as dúvidas constantes sobre aquilo que recebia dogmaticamente como alimento de fé – e consciência, sobretudo. É a mente moldada que tende a procurar aquilo que tem hábito de “enxergar”. Só é possível tratar “pistas” se a gente tem ideia do que procura. Do contrário, um sonho é só um sonho, uma foto é só uma foto.
Saramago sugere que tentar convencer o próximo é uma tentativa de colonizá-lo, uma violência. Penso sobre a explicação que um deputado brasileiro ofereceu para sugerir que negros são amaldiçoados. “Tá na bíblia”, ele disse, apontando a passagem. Mesmo que ele acredite nisso e tenha manifestado a opinião por pura fé, desver o quão racista é o comentário não é uma questão de escolha. Na verdade, enxergar o racismo inerente no comentário também não. No entanto, para aliviar o peso do comentário, é preciso refazer algumas conexões cerebrais. É preciso reaprender a enxergar, repassar conceitos profundos em nossas consciências opositoras, desaprender o racismo estrutural, negar a História e as estatísticas. Mesmo o cristianismo vem em muitas apresentações, ortodoxas, radicais e até não-praticantes. O comentário não ressona da mesma forma com todos, mesmo que a gente possa tentar entender de onde vem o aprendizado dele.
Entendo, há muitos anos, que a visão teológica é uma ferramenta. Stephen King, escritor de famosas histórias de terror, foi um ateu convicto por anos. Um dia, decidiu que precisava supor estar sendo vigiado por algo maior, para que não se comportasse da maneira destrutiva que ele tendia a comportar-se. Nesse sentido, é possível pensar que mesmo a não-crença é uma maneira de manter-se neutro. Não defendo deus algum porque, entre tantas possibilidades, nenhuma parece certa. Em parte, é como percebo a minha não-crença. Quem de nós poderá dizer o que existe depois dessa vida e como merecê-la? Como é possível ter certeza absoluta, num universo tão vasto de deuses e cosmogonias? O que parece ser uma escolha, a não-crença, é uma maneira de externar o que há de profundo na pessoa que me tornei. Um amputado, talvez, em relação à maioria das pessoas, sem qualquer aptidão para a contemplação do sobrenatural.
Da maneira que enxergo, todos guardamos um universo de intercessões. Sujeitos a um mesmo universo material, tentamos explicá-lo da melhor maneira que podemos. A acuidade com que enxergamos a morte, em todos os seus detalhes e circunstâncias, pode ser especialmente avassalador e é apenas natural que a queiramos controlar – ou mesmo negar. A dimensão assoberbante do ciclo da vida, a interdependência de todos os fatores no organismo em que habitamos e de onde contemplamos o cosmos, nos compele às explicações, um pedacinho por vez, para que não nos sintamos uma bolinha num jogo de pinball. Dividimos a imensidão do universo em bilhões de universos particulares, mundos secretos complexos, dotados de energias, fantasmas, seres alienígenas, vazio.
A escolha possível, parece-me, é tentar aproximar e até entender. Conhecer visões diferentes e ampliar nosso percepção da complexidade da cultura e da consciência humanas. Vestir outros olhos e contemplar o todo de nossas forças e fraquezas pelos olhos alheios. Mas o processo pode ser doloroso, lento. Por vezes, é até violento. O encontro pode ser disruptivo e assustador. Por vezes, encontra-nos despreparados, suscetíveis e, como no corolário da lei de Murphy, pode terminar por despedaçar nossas conexões, ainda que queiramos exatamente o contrário.
Tentemos de novo e de novo, um dia de cada vez.
Estou pronto pra ser obsoleto. Entendo-me absolutamente superado e razoavelmente desnecessário. Talvez tenha ainda, da altura dos meus quarenta anos identificados por pouco com os chamados “millenials”, algo a dizer aos que chegam sobre como o privilégio branco ainda há de nos matar a todos. Mas recebo com alguma tranquilidade a ideia de que meu tempo passou.
Sou branco, hétero, cisgenero, meia idade; fui eu quem mergulhou o mundo no estado em que está e sou eu quem faço peso para afunda-lo mais e mais. Quero ser esquecido na ascenção da mulher negra ao lugar que parece-me justo, o de dona de tudo o que povo negro construiu neste país. Quero desaperecer sem pompa alguma enquanto vejo a nossa bonita juventude negra asceder aos lugares que merece, como médicos, advogados, prefeitos, governadores, presidentes.
Anseio pelo tempo em que o tempo, enfim, dê cabo de nós, falidos homens brancos, com chances demais de fazer as coisas funcionarem, tendo falhado miseravelmente tantas miseráveis vezes.
Que a história me dê uma nota de rodapé genérica, juntando tantos tãos iguais, e que seja algo medíocre, a sugerir que usurpamos tanto talento, tanta força, tanta realização, tanta capacidade, como se a nossa história tenha sido mero contratempo ao avanço da humanidade.
Desperta pra vida a precipitar
A gota despenca da nuvem a se perguntar
Se há lá embaixo, talvez
Alguém que a possa salvar
O caminho é longo, a descida é fria
A velocidade é muita, vai-se embora o dia
Poucas cores sob as nuvens
Na ausência, longa espera
Tanto frio, Tudo cinza
Até que a chuva atinja a terra
No cair da gota, um jardim se abre
Revelando beleza como não há
Entre aquelas no canteiro
Da flor de maracujá
A gota sonha, olho aberto
A flor poder tocar
Quantos cores! quanto viço!
“Possa o vento me soprar”
“Que eu caia feito beijo
No seio dessa flor”
“Que eu descubra, enquanto chovo,
O que chamam de amor”
Mais frio sente a gota, tão forte o vento sopra
Mais longe, teme a gota, colocar-se em meio à horta
Chora a gota, meio caminho
Não ser o orvalho ou o sereno
Que descansam, eternidade
Sobre a pele do desejo
Meio instante, nem segundo
Toca a gota a sua flor
Vai por terra, chão abaixo
A promessa de amor
Sonho breve sonha a gota
Sonho nada, nada não
Devaneio, tão ligeiro
Feito chuva de verão
A gota só conhece a queda
Agosto chegou ao fim e setembro veio parecendo boi bravo. Frederico mal deu-se conta e já tinha perdido o descanso do 7 de setembro. A passos largos, caminhava em direção ao aniversário. Invariavelmente, Fred sempre comemorava, como sugere o dito popular, mais uma primavera, no dia 23.
Estando ocupado demais para receber o mês de celebração de seu nascimento, Frederico conseguiu evitar seu “inferno astral”, mas chegou ainda a tempo da contabilidade que fazia todos os anos, quando tentava verificar que objetivos tinha já alcançado e quando vezes tinha falhado ao longo do tempo. Balanço, obviamente, faz-se às portas fechadas, como os grandes magazines. Fred ensimesmou-se e carregou seu ábaco cerebral. A tortura não podia contar com a dinâmica própria da moderna tecnologia.
Frederico tentou animar-se decidindo que ia parar de fumar. Matematicamente, acusou o ábaco mental, fazia sentido: a um maço por dia, os 300 reais mensais seriam aplicados em investimentos e, em lugar de queimar dinheiro, a poupança do cigarro iria trabalhar produzindo dinheiro. Focado no novo objetivo, o rapaz conseguiu interromper o balanço que havia começado, de seus fracassos e sucessos.
Fred queria chegar ao dia do aniversário com a metade do valor que acreditava que iria poupar. No entanto, logo nas primeiras horas, depois de ter conseguido adestrar os impulsos iniciais, o rapaz comprou logo um punhado de cigarros avulsos. Queria deixá-los desprotegidos, queria perdê-los para fumar menos, mas, ainda assim, queria fumar. Anotou a despesa e contabilizou o montante contra a poupança projetada.
Mais tarde, Fred voltou a controlar o hábito cruel e abriu o ábaco de novo, não tendo com o que distrair a própria ansiedade. Levantou-se, sacudiu a cabeça e pôs-se no chão a fazer flexões. Uma, duas, três… Quatorze! Sentiu que, afinal, não estava tão mal. Se quisesse, faria logo 30 ou 40. Mas, lamentou, o cigarro tinha lhe roubado alguma disposição. Teve vontade de fumar de novo, mas teve mais vontade de deixar o tabagismo.
A primeira noite foi terrível. Insônia, café, Facebook e uma dose de autopiedade, com aquela visitinha sorrateira ao perfil da ex. A cidade do lado de fora do apartamento de repente ficou enorme, vasta, um deserto. Frederico pensava no sucesso alheio e como todas aquelas outras pessoas nunca tinham cometido os mesmos erros que ele. Todo mundo da janela para fora, escolhia jogar com o Ryu e sabia a hora exata de desferir um shoryuken!
Adormeceu, afinal, e despertou na manhã seguinte entupindo-se de tudo o que tinha na cozinha. Tentava substituir o desjejum tradicional com a oferta da despensa inteira. Escovou os dentes rapidamente e foi trabalhar. Parou no ponto de ônibus por um tempo e quis chamar o coletivo, acendendo um intervalo. Ônibus sempre se adiantam quando você resolve fumar. Despistou o ímpeto dispondo-se a caminhar para o trabalho. Chegou lá cansado e esbaforido, e refrescou-se com a segunda coisa que teve necessidade de consumir ao final da jornada: água.
O dia no trabalho também foi tenso. Fred estava irritadiço e fez-se encafezado, de tanto que precisou distrair a boca com café naquele dia. Evitou telefonemas, também bebeu muita água e até escondeu-se para fazer flexões. A abstinência do tabaco parecia ter colocado a contabilidade de aniversário em segundo plano. No final do dia, em casa, Fred jantou YouTube e adormeceu cansado, tarde da noite. O cigarro, felizmente, já não o encontrara acordado de novo.
No dia seguinte, Frederico precisou anotar na cabeça um novo punhado de cigarros avulsos que decidiu levar para o trabalho. Tinha acordado na fissura, mas evitou até onde podia. Tomou café na padaria perto de casa, encheu a mão de cigarros e os colocou sobre a mesa de trabalho. Brincou com eles por um tempo e, enfim, foi à varanda saciar o monstro. Arrependido, sentiu-se mal e apagou o túbulo de fumo ainda pela metade.
A dedicação de Fred, afinal, acabou por chegar ao ponto de impressionar os amigos e colegas. O rapaz decidiu malhar à noite, em casa mesmo, para distrair-se e para renovar os pulmões. Conseguiu voltar a ler e escrever, ficando acordado até tarde, às voltas com as letras. Ganhou peso, é verdade, mas aprendeu a comer bem, pelo menos, no desjejum e acabou por aumentar a ingestão de café. Fred passou a chegar ao trabalho mais disposto, menos pálido e fedorento.
Na manhã do aniversário, às portas da primavera, Fred acordou de novo inundado por aquela vontade de torturar-se com o balanço dos fracassos. Decidiu, ao contrário, contabilizar os ganhos com a decisão de parar de fumar. Planejou salvar do mês corrente o que fosse possível, fora aqueles dois punhados de “picados”, e projetou a aplicação dos R$3600 que teria ao final de um ano. O valor, pensou ele, poderia determinar uma troca de moto todo ano!
Rabiscou, rabiscou, conferiu o montante. Em cigarros, tinha mesmo conseguido. Nenhum dinheiro tinha sido gasto com nicotina, excetos pelas recaídas iniciais. 13 dias sem cigarro – a conta, no papel, batia bem: R$130 de crédito. Simples assim! Fred, no entanto, empurrou a conta adiante e misturou-a a sessão de tortura a que o aniversário sempre o empurrava. Ali, ainda na mesa do café, de repente achou meio bobo um homem da sua idade ir para o trabalho à pé, ao invés de dirigir um invejável automóvel último ano. Pensou se não ficava ridículo naquelas roupas de esporte, depois de tantos anos fantasiado de rato de lan-house. Ladeira abaixo, acabou entendendo que o novo estilo de vida, com 15 dias de idade, determinava ainda mais gastos e a aplicação dos R$3.600,00 nunca ia acontecer. Desiludiu-se e entendeu que os tênis novos de corrida, a comida saudável e as camisetas de esporte eram gastos desnecessários.
Frederico botou a mão no queixo, contemplando o vazio, suspirou fundo e marcou no ábaco interno que lhe martelava: a tentativa de parar de fumar era mais um colossal fracasso do seu prolífico talento. Tomou o elevador, passou na padaria. Do maço novo, tirou um cigarro, acendeu-o e acomodou-se de novo na “velha cadeira do hábito”, cujo assento mal tinha se esfriado.
O telefone tocou na redação e ela atendeu de pronto. Mesmo em tempos de crise, a longa experiência de repórter permitia alguma distância mesmo para as notícias mais aterradoras. Sua dedicação profissional frequentemente lhe rendia as habituais alcunhas machistas de sempre. Era talentosa, corajosa e determinada como poucos colegas, mas vivia num mundo de homens vaidosos, reconhecidos como intrépidos investigadores, enquanto a ela sempre calhava a fama de enxerida e valentona.
Do outro lado da linha, ele apenas a cumprimentou carinhoso. O silêncio que guardou, sem saber exato o que dizer, logo despertou nela um nó pesado na garganta. Ela sabia da crise e tentou distrair-se com o trabalho até ter que enfrentar este momento, inevitavelmente.
Invariavelmente, as notícias davam conta dos feitos e sacrifícios dele. Nenhum tablóide interessava-se pela maneira como ela o apoiava, apesar de todo medo e toda dor. Ninguém dava conta de que ele mesmo não podia, para mais ninguém no planeta, deixar transparecer suas fragilidades. Para o resto do mundo, ela nem mesmo existia. Embora impetuosa, mascarava-se como a petulante esposa de um repórter pouco expressivo.
Respiraram pelo telefone com saudade. Ela sabia, como ninguém poderia imaginar, das coisas que ocupavam a cabeça do homem mais poderoso do mundo naquele momento. Ela tentou diverti-lo, algo nervosa, perguntando se ele ouvia a mesma música de sempre. Ele riu, puxando do nariz. Ela apertou os olhos, ouvindo a canção na cabeça. Exortou que ele trocasse a faixa e perguntou se havia tempo para almoçarem. Desligaram.
O encontro seria curto. Ela rangeu a garganta e procurou preparar-se, de modo a parecer forte para ele. Ela expirou pesado, deu ordens de que atendessem suas ligações e caminhou apressada para as escadas, como se saísse no encalço de outra história, as pernas pesadas como chumbo. Ela sentia que afogava, mais uma vez.
Alcançou o terraço e abriu a porta com um sorriso tímido, modelado a esconder o choro. Ele parecia refeito e resignado, concentrado naquilo que tinha que fazer. Abraçou-a com carinho e leveza. Arrependia-se sempre de exigir tanto dela, antes da partida, e tentava tranquilizá-la, sugerindo que não havia de ser nada de diferente das outras vezes.
Mas ele já tinha morrido. Já tinha desaparecido por meses. Toda vez, ela tentava manter-se forte para ter que enfrentar um novo luto. Toda vez que ele riscava o céu como um deus, ninguém dava-se conta de que era nela que ele primeiro se apoiava. E era ela que ele primeiro deixava.
Acompanho um perfil no Instagram chamado “Diz que não é racista, mas”. Recomendo. Sou branco, entendo o privilégio perverso que tenho e preciso de referências constantes. Escrevi uma mensagem de agradecimento e fui ao canal do PH Côrtes. Ele repreendeu o Marcelo D2 pelo comentário racista sobre o Hélio Lopes, deputado mais votado do Rio de Janeiro. (mais…)