Conto de fadas

O sol brilhava no princípio da tarde de um belo sábado quando o casal deixou a reunião, empolgado. Deixaram o prédio tentando evitar expressões mais entusiasmadas, mas se olhavam com brilho nos olhos, vislumbrando o bonito trabalho que tinham pela frente. Ela entrou no carro, abriu a porta do carona e suspirou de alívio, enquanto ele entrava. Ela sorriu satisfeita, os olhos dele a observá-la. Ela juntou as mãos num bater de palmas:

“Ai!”, deu uns tapinhas na coxa dele. “Que legal Nossa… que alívio!”, comemorou.

“Não é?”, ele respondeu, observando a empolgação dela com um sorriso. Ela olhou para ele como se pudesse enxergar algo no futuro:
“Parece que a gente não vai ficar longe nunca mais”. Ele gargalhou e concordou:

“Parece que não”.

” A gente vai trabalhar junto pra sempre”, ela acrescentou, segurando o olhar no futuro com um sorriso. Logo abaixou a cabeça, como se, de repente, precisasse evitar os olhos dele, encabulada. Ele também sorriu sem graça e engoliu seco, como se segurasse algo que precisava dizer. Ela ligou o carro e sorriu de novo, com alguma euforia.

“Nossa, ia ser muito legal se desse certo”, ela começou a divagar enquanto dirigia. “Imagina! Esse projeto dá certo, a gente monta o departamento e começamos a coisa toda do começo”, fantasiou.

“Putz! Ia ser muito legal! Ruim pra você, que não vai ficar livre de mim nunca”, ele gargalhou.

“A gente tá perdido! Vai enjoar um do outro!”, ela concordou, gargalhando de volta.

Houve de novo um pequeno silêncio. Havia algo na cabeça de ambos, certamente, e era difícil dizer se pensavam a mesma coisa. Conheciam-se há alguns anos e passavam muito tempo juntos. Além das horas de trabalho, quando partilhavam muita coisa e falavam de tudo, ultimamente passavam mais tempo envolvidos em novos projetos. Era ele quem primeiro ouvia muito do que acontecia com ela e era ela quem sempre primeiro opinava sobre as questões que ele trazia. Apoiavam-se, divertiam-se, confortavam-se. Tinham a mania de tentar entender como o outro estava, ele sempre mais transparente.

Ela voltou a falar de possibilidades para o projeto novo. Ele precisou interromper:

“Ana, eu preciso te contar uma coisa.”

“Opa!”, ela respondeu, estranhando o tom. Ele começou:

“A gente se conhece já há um tempo e se dá tão bem…”

“Verdade”, ela assentiu sorrindo. “Incrível, né? Parece mais tempo, fala a verdade.” Ele não interrompeu o raciocínio:

“Então. Acho que… tem chance de ninguém ser mais presente na minha vida do que você.” Ela sentiu o coração disparar, sentiu a cabeça leve e uma gostosa vontade de rir. Perdeu a concentração para o trânsito e desculpou:

“Acho que vou parar o carro. Isso parece importante.” Encostou o carro, desligou o motor, ajeitou-se no banco e sorriu ao amigo. “Pode continuar”, insistiu ansiosa. Ele sorriu, voltando a procurar palavras:

“Então”, repetiu. “Você deve ser a pessoa mais presente na minha vida… quero dizer… a gente passa muito tempo junto, conversa o tempo todo…”, interrompeu, rindo-se de estar tão embaraçado com alguém que era, até agora mesmo, tão familiar. “Lá em casa todo mundo já sabe…” Ela riu também e sentiu um frio na barriga. Tentou conter-se, mas logo levou as mãos à boca, os olhos arregalados. “Nós estamos no mesmo lugar”, ela pensou.

Ele sorriu nervoso e continuou:
“Não sei se soa estranho, a essa altura… quero dizer… tanto tempo depois…”, riu nervoso de novo, “você sabe que eu te amo.” As mãos dela permaneceram no mesmo lugar, a mesma expressão, mas os olhos começaram a brilhar. Ele mesmo se emocionou, levou as mãos aos braços dela e, afinal, tomou as mãos dela não mãos. Ela mal respirava, o coração disparado.

“Eu precisava te dizer isso. Pode parecer precipitado, mas… eu vou me casar.”  A moça gelou. A expressão desfez-se numa grande interrogação. A notícia a acertou como um soco e ela sentiu que afogava. A comoção virou um engasgo desconfortável. Ela piscou muitas vezes, girou a cabeça, tirou as mãos das mãos dele e juntou-as sob o queixo e tentou sorrir, em aprovação.

“Hmmm”, exclamou com os olhos ardidos, a garganta já a arranhar. Ele mantinha os olhos arregalados, esperando que ela dissesse algo, as mãos fechadas suadas de ansiedade. Ela manteve a cabeça baixa. Juntava forças para engolir o que sentia e parabenizar o amigo. Por fim, ergueu a cabeça de novo, sorriu nervosa e respondeu:
“Como?”, gesticulou como se desistisse de controlar-se. Ele estranhou. Ela continuou:

“Como? Quando?” O sorriso dele desmanchou. “A gente passa o dia inteiro juntos, faz tudo junto, conversa de tudo… Onde você conheceu essa… essa… mulher? Eu não sei dessa mulher!”, terminou por desabar.

“Quê isso, Ana?”, ele perguntou algo assustado. Ela recuperou a respiração, fez um gesto, como se pedisse para ele esperar. Ele a observava pasmo.

“Essa mulher… por que você nunca falou dela?”, ela perguntou, ainda de cabeça baixa, tentando esconder os olhos vermelhos e o nariz a escorrer.

“Como assim, Ana?”, ele pareceu surpreso. “Eu devo ter comentado, com cert…”

“Nunca. Nem uma vez”, ela interrompeu.

“Que diferença faz? O que importa isso?”, ele perguntou.

“Tudo, Pedro!”, ela o encarou afinal, os olhos vermelhos, uma lágrima riscando a bochecha esquerda. “Tudo o que você disse! O tempo, a pessoa mais presente. A primeira pessoa de manhã, merda!”, xingou e pediu desculpas, levando as mãos ao rosto.

“Não tô entendendo, Ana”, ele observou. Ela se irritou novamente.

“O que é tão difícil de entender?”, fez um gesto amplo e nervoso com os braços que apontava o tamanho da ignorância do amigo. “Você esteve presente em tudo, sempre que eu precisei. É quem melhor me ouve, quem mais tempo pra mim. Você nunca, nunca, me trata como se eu estivesse ganha. Você me agrada o tempo todo. O tempo todo! Ninguém se importa mais do que você.”

“O que isso tem a ver com qualquer coisa, Ana?”, o rapaz perguntou, irritado. Ela, a essa altura exasperada, tentava encontrar uma maneira de explicar como pôde ter cometido o crime de apaixonar-se pelo amigo.

“Pedro…”, ela começou suspirando. “Eu…  a gente… você é a melhor pessoa que conheço. Meu amigo mais próximo, mais presente”, evitou usar a expressão que o amigo usara. “Você… sabe tudo. Se importa com tudo… “, sorriu dolorido um sorriso de saudade, como se antevesse que aqueles dias de proximidade estavam fadados ao fim. Sua confissão, ela sabia, determinava o fim daquela amizade. Desistiu, afinal. “Eu amo você, cabeção”, aliviou-se. “Não tem muita matemática envolvida.” Apertou os olhos demoradamente e sonhou com um carinho. Ele não tinha reação. Olhou para ela um tempo, olhou para o carro ao redor. Por fim, ele apresentou tudo quanto entendera do desabafo da amiga:

“Porra, Ana! Crise de ciúme agora? Eu te conto a coisa mais importante que vou fazer e você resolve que tem ciúme? Tá achando que vai me perder, que não vou ter tempo? Poxa vida!”

Ela levantou a cabeça e olhou pra ele, incrédula. Não tinha como fazê-lo entender, aparentemente. Ele sentia-se injustiçado e esperava que ela se desculpasse:

“Não esperava isso, sabe? De repente, eu não te conheço mais. É disso que você tá falando, ciúmes?” Ela explodiu mais uma vez, dessa vez, sentindo o coração desfazer-se com os cacos da amizade finda:

“Merda, Pedro! Merda!”, ela devolveu. “É tão difícil assim entender que eu me apaixonei? Eu tenho que desenhar pra você, caralho?”

Ele ficou calado uns segundos, olhando para ela a chorar, esfregando a testa, nervosa. Pensou longamente, vasculhando a mente, procurando o que dizer. Afinal, ele franziu a testa, olhou pra ela, respirou fundo e hesitou. Virou os olhos algumas vezes, como se vasculhasse um pesado arquivo mental, ergueu o dedo, hesitou de novo, respirou de novo e mandou:

“Como? Quando?”

Ela ergueu a cabeça e devolveu, furiosa:

“SAI DO CARRO AGORA!”

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