Bohemia ou Original | Parte II

Depois de bebermos pelo que pareceu dias a fio, assistindo a um festival interminável de música, eu, ainda deslocado, quis saber onde podia dormir, ou descansar um pouco.

– Mesmo? Você se sente cansado? – perguntou o barbudo. Fiz um beiço de dúvida, olhei para cima como se pudesse “enxergar o cansaço” no cérebro e fiquei em silêncio, tentando aferir como me sentia.

– É… acho que não.

– Então vamo curtir! Quer fazer o quê?

– Ficar à toa.

– Boa!

Olhei pra ele intrigado:

– Você não vai embora, né?

– Não sou eu que decido.

– Tá… certo. Tem a ver com aquele lance de perguntar…?

– Me diz você.

Me incomodava um pouco receber toda essa atenção, mas eu pensava: “o cara é onipresente. Deve tá por aí também, em todo lugar”. Permaneci calado. Nada que me ocorria parecia ser importante. Do jeito que via, o lugar onde estava era o final de todas as coisas. Não teria porque descobrir respostas que podem apenas fazer com que me sinta mal a respeito de como vivi.

– Não tem um jeito certo – me disse ele como se lesse os meus pensamentos e tentasse me confortar. E sentou no chão.

– Eu sei… – me sentei também – Mas é difícil ouvir.

Ele já tinha outra cerveja e servia outros dois copos.

– Ouvir o quê? Que existiam milhares de possibilidades pra cada coisa que você fez ou quis fazer?

– É, mas…

– Xô adivinhar: culpa, né? Arrependimento?

– É. Acho que sim…

– Besteira. Isso é egoísmo!

Eu senti a afirmação como um soco. Sem perder tempo sendo simpático, ele tomou do copo numa boa golada e se inclinou, escorando o corpo nos braços. Continuou:

– Vocês vivem cheios de culpas, de arrependimentos. Eu queria mesmo entender quem vocês pensam que são: sempre insatisfeitos, nada é bom o suficiente pra vocês. “Ai, que Deus me dê vida eterna!”, “Quero ir pro paraíso”… Quê que é? Viver uma vida só é pouco? O planeta, a natureza, as pessoas não são dignos da sua magnânima presença? Vocês são uns ingratos! Vêm com essa de que deus criou o universo, que tudo é perfeito, mas todo mundo acha que merece a Primeira Classe! Que ainda tem algo melhor os esperando.

– E o que isso tem a ver com culpa? – perguntei, me sentindo um pouco ofendido.

– Culpa é um jeito modesto de pensar que o universo gira ao redor de cada um de vocês. “Não devia ter feito aquilo” – ele afinou a voz, como se imitasse alguém para provocar. “Por que eu fiz aquilo outro?” – Vai lá e faz diferente, se não deu certo da primeira vez! “Fulano vai ficar chateado comigo…” E a vida dele vai acabar, né? Faz o que tem que fazer e esquece. Bola pra frente! Não! Melhor criar uma mitologia inteira baseada no quanto são egoístas e preguiçosos. Melhor esperar o universo enxergar sua suprema importância. E mais fácil ainda: distribuir culpa! “Foi deus quem quis assim.” – novamente a vozinha fina. Vocês podiam entender que as coisas acontecem porque acontecem. Porque se interferem, se cruzam. Porque há possibilidades e escolhas também. É como são.

Escutava o homem calado de tudo. Nem pensava em discutir. Não ia agora argumentar com deus! Era só que faltava. Ele, porém, não parecia pensar em parar de falar. Pegou a garrafa de cerveja, levantou-se e continuou a falar, gesticulando muito:

– Vocês são tão bons nisso que até o livro dos livros – fez gestos de grandeza, fazendo troça – diz que o criador se arrependeu de tê-los criado. Nem o criador vocês pouparam! A culpa é dele, que, apesar de onisciente – fez uma pausa dramática, apontando, com uma careta, a conveniência do texto – não sabia que vocês eram pecadores por natureza. Sinceramente…! Sabe porque todo mundo engole a lenda de Jesus Cristo? Por que vocês são muito, MUITO bons com essa de culpa: o cara é o filho de deus que morre por seus pecados. Ou seja, vocês admitem as falhas e renovam a culpa, mas, ao mesmo tempo dizem de si mesmos: somos tão importantes que o criador deu um deus pra gente imolar.

Ele bateu palmas, aplaudindo com ironia a falsa modéstia que alegava nos ser própria. Parecia algo bêbado. O tempo todo tomava direto da garrafa e gesticulava muito. Ele continuou:

– Os gregos é que eram bacanas! Pelo menos eles enxergavam potência: tinha herói pra todo lado nos textos deles. Aí o mundo vira cristão e adeus potência! “Deus vai cuidar de tudo, desde que eu me sinta culpado.” Culpa é um tipo de salvo-conduto: não vou fazer nada, mas vou me sentir especialmente culpado ou arrependido por não tomar alguma providência. “Eu sou tão virtuoso que vou carregar esse peso.”

Ele aplaudiu de novo e olhou o infinito, aparentando embriaguez. Da garrafa que não secava nunca ele bebia grandes goles. Por fim, ele olhou pra mim e apontou o dedo:

– Vocês são muito bacanas. São mesmo! Considero vocês pra caralho! Mas vocês parecem crianças mimadas precisando de atenção.

Eu olhei pra ele, sorrindo tímido. Ele sorriu um sorriso bêbado, mas muito carinhoso. Finalmente, arrisquei:

– É… mas, acho que é porque a gente se sente pequeno, saca? Impotente diante da grandeza das coisas, do universo, sei lá. E tem gente que não tem oportunidade nesse mundo. A gente não vê as escolhas todo o tempo.

Baixei a cabeça pensando. Ele se sentou novamente e ficou me olhando enquanto me ouvia, bebendo da garrafa com menos voracidade. Eu olhava a distância.

– Meninos de rua, chefes de família, mães tentando o melhor pelos filhos… todo mundo. O quê que a gente sabe, sabe? É estranho, mas arrependimento é um auto-abraço, eu acho: “Você é um cara legal. Não fez por mal”. Saca? – Bati as mãos sobre os ombros opostos, como se me desse um abraço – “Ei! Na próxima vez vai dar tudo certo” – me abracei novamente – mesmo que seja difícil acreditar nisso. A gente não controla nada, mas precisa ter essa sensação. Ainda mais quando dá tudo errado com a gente no meio. “Não era pra ter sido assim…” Sei lá… a gente é pequeno, sabe? Insignificante . Acho que ego grande é meio uma defesa pra gente não sentir que pode ser esmagado a qualquer momento. Antes ser esmagado por culpa!

Ri tímido da piadinha, olhando para o barbudo de novo. Ele ainda parecia bêbado. Fechou os olhos demoradamente, pôs a garrafa de lado e me deu um abraço, ali como estávamos, sentados.

– Lindo. Pôrra! Lindo. Viu como cês são foda? Vocês são grandes. Sábios, até. Não precisam de tanta auto-piedade – e reforçou o abraço.

Então, eu pensei: “Mas, você sabia que eu ia dizer isso” e indicaria:

– Você sabia que…

Ele me interrompeu, sorrindo:

– Ah! Eu sou só um cara bêbado.

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