A normalidade não conhece razão

Quando era criança, escutei histórias sobre o Louco do Saco. Era um sujeito à-toa na rua que apanhava crianças levadas e lhes dava sumiço. O homem que recolhia vidros e garrafas também era outro que não batia bem – e que ninguém tinha problemas em maldizer.

Ainda na infância, conheci um personagem que acabou por ser imensamente marcante. Zé Castelão era um senhor que circulava as matas próximas à casa do meu pai, em Roças Novas, e amarrava grandes sacos cheios às árvores. A cidade toda achava aquilo estranho e tratava o Castelão como maluco. Ninguém sabia ao certo onde morava e o tratavam por eremita; diziam até que era um homem perigoso.

Meu irmão e eu, quando brincávamos de soldados em meios às árvores, ficávamos impressionados com as “esculturas” do Castelão. Frequentemente tínhamos medo e a imaginação ia longe acerca do conteúdo dos sacos. Algumas vezes, imaginávamos que ele ainda estava por perto e saíamos correndo. Durante muito tempo, tivemos medo do Zé Castelão como se do próprio bicho-papão.

Um dia, caminhávamos meu pai, meu irmão e eu pelas veredas em meio à mata e esbarramos um senhor de pouca estatura e muito forte. Seu vigor físico distoava enormemente de seu rosto de velho, cabelos grisalhos, dentes ausentes e muitas rugas. O velho trazia um saco cheio de lixo. Ele nos cumprimentou a todos e reclamou da quantidade de lixo que encontrava por ali. Parecia frustrado, triste. Explicou que fazia isso há anos, sempre recolhendo o lixo dos outros e nada mudava. Era tanto lixo que ele só podia recolhê-lo em sacos e cuidar pra que não se espalhasse, amarrando cada um deles às árvores. Depois, despediu-se e sumiu mata adentro. Lembro que meu pai sorriu surpreso: “esse é o Castelão!”

Não lembro da minha reação então. Visito essa memória agora e tendo a me recordar que o medo do Castelão foi embora. Hoje, só consigo enxergar a acachapante lucidez do “maluco do saco” e sua quixotesca luta contra o lixo e o descaso de outros tantos.

Sobre os loucos é possível dizer o que quiser. O que não é usual, ortodoxo, é condenável. É apenas natural. Ninguém tinha se preocupado em saber porque o Castelão fazia o que fazia, o porquê de tantos sacos espalhados mata adentro. Era apenas estranho e, por isso, ele era um louco. Os demais, como tantos, jogavam lixo em qualquer lugar, como sempre tinham feito, como sempre viram fazer. A razão afiada do “eremita” era dolorosa, distribuía responsabilidades, provocava mudanças no comportamento de todos.

Hoje, escuto sempre dizerem que sou doido. Não é raro que eu me orgulhe, me lembrando do exemplo do Castelão, vingador verde, guardião da natureza. Outros muitos estão por aí, combatendo seus moinhos com uma lucidez que a normalidade desconhece, automatizada ao extremo, feito robôs em linha de produção. Não tenho luta nenhuma; não sou um exemplo de nada, mas tenho profunda admiração por loucos desse tipo. Se me chamam assim, tenho algum motivo pra me envaidecer.

O chato é o desinteresse nas razões do “louco”. Raro perguntam, raro se interessam e frequentemente a normalidade os dispensa. “Ah! Ele é louco!” e tá resolvida a questão. Assumem uma porção de predicados: não sabem conversar, não sabem ouvir, não sabem se comportar. Se se comportam, se ouvem, se conversam como espera a normalidade parecem tristes. “São suscetíveis, esses malucos”. “O louco não gostou do que eu disse”, e tratam como se tivessem medo ou pena.

Eu entendo que a gente precisa duvidar mais, escapar mais. Criticar-se constantemente como exercício de “amor ao próximo” – como diria lá o cabeludo, barbudo, europeu, irmão do Tiradentes. Acho que enganam-se os que imaginam tratar-se de baixa auto-estima. Não vejo problema em pedir desculpas e pressupor a minha responsabilidade (não culpa). Em qualquer situação com mais de uma pessoa, a interação será de responsabilidade de todos – mesmo que seja inadvertidamente.

Aprendi com um “louco ermitão” que, pra além de normalidade, deve haver uma boa razão praquilo que se faz. Há bilhões de pontos de vista diferentes e a maior parte do tempo a gente tá muito pronto pra corrigir o outro, pra apontar o que nos provoca estranheza, sem estar atento às “nossas próprias maluquices”. A gente não faz silêncio. Não ouve com reverência. Não é valendo-se de “umbiguismo” que a gente há de crescer e não há de ser porque se precipitam abismo abaixo que todos os demais havemos de fazê-lo. Isso é loucura!

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